O luto e as lutas do fim de um doutoramento na UFAM

Imprimir email

Eduardo Martins

Doutor em Linguística pela UnB e professor da Ufam



Parece loucura, mas é real. Algumas vezes, a conclusão do maior grau de titulação acadêmico, que deveria ser um momento de celebração, é acompanhada de um terrível sentimento de perda, um rompimento de um vínculo, um esvaziamento de propósito, uma angústia generalizada, ou seja, vive-se um verdadeiro luto. Isso porque o doutorado é um projeto de vida de longo prazo, assumido com forte envolvimento cognitivo e emocional.


Durante 48 meses, o pós-graduando tem uma rotina de estudos, leituras, experimentos, análise de dados, reflexões e escrita da tese, o que costuma ser um período de alto comprometimento de tempo e energia individual, sentido pela família e pelos amigos. Somente quem passou no processo pode confirmar a intensidade do luto decorrente da quebra desse paradigma. Assim, o encerramento desse ciclo assemelha-se ao término de um relacionamento, com uma mudança brusca em tudo o que a pessoa estava acostumada a vivenciar, com incertezas sobre o futuro. É um luto acadêmico.


No Amazonas, uma parte dos pós-graduandos ainda precisa sair de sua cidade natal para os grandes centros de outros estados, que possuem mais recursos para a pesquisa, tendo que lidar com a adaptação a uma cidade desconhecida, outro clima, comida diferente, costumes culturais e amigos novos. É uma luta pessoal para estudar. Uma batalha que ainda envolve dificuldades financeiras persistentes decorrentes da diminuição do número de bolsas de estudo da CAPES, do CNPq. das FAP’s e, ainda, a falta de reajuste dos valores das bolsas por 10 anos (2013 a 2023). Dessa forma, fazer um doutorado é reorganizar a vida, tentar lidar da melhor forma com altos custos emocionais e financeiros. Não é a toa que pesquisas apontam que os índices de ansiedade, depressão e outros distúrbios psíquicos são assustadoramente altos na pós-graduação e após sua conclusão. As lutas para concluir um doutorado perpassam toda a vida de uma pessoa.


Parece loucura, mas é real. A pandemia de Covid-19 ainda deixou as dificuldades mais severas. Lockdown; universidades fechadas por meses; aulas e orientações adaptadas para o meio virtual; distanciamento social; grandes mudanças nos projetos de pesquisa; adoecimento grave de pós-graduandos, familiares e orientadores; e a faceta mais danosa da calamidade mundial: a constante presença da morte. Sobre isso, nem foram feitos estudos estatísticos buscando mensurar essa aterrorizante realidade especificamente na pós-graduação. A luta por um doutorado tornou-se em luta pela vida. Ninguém saiu ileso. Todos sofreram, mesmo aqueles que estavam fora, mas tinham parentes e amigos no Amazonas. Não esqueçam que Manaus virou a capital mundial da Covid-19 em janeiro de 2021, com 37.942 novos casos, 5.018 internações e 2.832 óbitos. O luto acadêmico transformou-se em luto social e familiar.


Mesmo diante desse suplício, desde 2021, a Universidade Federal do Amazonas resolveu acrescentar ainda mais outra luta a quem concluiu o sofrido doutorado: uma devolução de valores ao erário. Sim, você leu certo! Desconsiderando o árduo processo de finalizar uma pós-graduação, esquecendo o lockdown que paralisou os cursos na pandemia, ignorando os altos custos emocionais, psíquicos e financeiros, os servidores que terminaram além dos 48 meses do prazo regulamentar precisam restituir à UFAM os valores recebidos como salários. Atualmente, são cerca de 30 servidores respondem a processos administrativos de devolução ao erário, mas o potencial é chegar a 150 servidores impactados.


Parece loucura, mas é real. Não bastassem as dificuldades naturais de concluir um doutorado, ser cobrado para devolver o salário que foi pago para você fazer exatamente esse trabalho é, simplesmente, um escárnio. A UFAM não aceita nenhuma justificativa de Força Maior ou Caso Fortuito, como o atraso gerado pela pandemia, para “absolver” administrativamente os servidores. Como resultado, a essa luta acrescenta-se outra: a batalha judicial. Além das despesas de mudar de cidade, é preciso pagar um advogado para evitar a cobrança dos valores por meio do Poder Judiciário.


Imagine se a mesma lógica acontecesse com outros profissionais. Se o pedreiro não entregou a sua reforma na data combinada porque a pandemia fechou a loja de material de construção, então, depois da conclusão da obra você, cobra tudo o que pagou porque ultrapassou a data da entrega. Como seria a reação dele? Imagine que você pagou um exame de saúde, mas o profissional passou da hora marcada porque teve uma emergência com outro paciente. Então você realiza o procedimento atrasado, recebe o laudo, mas pede o valor pago de volta porque o exame passou da hora combinada. Isso parece correto?


A mensagem da situação é essa: não vale a pena! Não vale a pena o esforço de fazer um doutorado. Não vale a pena buscar a excelência profissional. Não vale a pena mudar de cidade para ter um título acadêmico. Não vale a pena o tempo passado longe da família e dos amigos. Não vale a pena o risco de ser condenado a devolver 48 meses de salário. Não vale a pena avançar o conhecimento na pesquisa. Não vale a pena entrar numa batalha judicial. Todavia, há quem pense diferente. Como dizia Fernando Pessoa: “tudo vale a pena, se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”. Assim, o luto de uma visão pessimista sobre o futuro não deve impedir a luta para concluir o maior grau de titulação acadêmico. Vale a pena! Parece loucura, mas é real.


Créditos imagem: Adobe Stock_shobakhul