Quem tem fome, tem pressa
André Ricardo Costa
Doutor em Administração e professor da Ufam
“Quem tem fome, tem pressa”. Recordo mote do sociólogo Betinho em suas andanças pelo “Ação da Cidadania”, proferido inicialmente pela cozinheira Terezinha, uma de suas muitas parceiras, com quem organizava trabalhos de solidariedade altamente efetivos no combate à fome. Era o começo da década de 1990 e o Brasil padecia do atraso socioeconômico cultivado nas décadas anteriores e os sistemas de saúde, educação e assistência social, hoje robustos e capilares, ainda estavam se estabelecendo.
Desde então podemos comemorar a solidez desses sistemas, com todo o ímpeto e preocupação de aperfeiçoá-los. Mas percebo que como sociedade estamos reduzindo o prestígio às ações solidárias. A preocupação individual com o próximo tem sido tratada como volátil, insegura. Os recursos e atenções se voltam para os sistemas e burocracias. Infelizmente vimos na pandemia como o tanto que se esperava dos sistemas não se concretizou. Vimos também surpreendentes iniciativas de empreendedorismo solidário para ajudar as vítimas e seus parentes. Histórias que ainda estão por ser plenamente contadas.
Agora presenciamos nossos irmãos gaúchos imersos em cenário de calamidade. As notícias, de quaisquer origens, reportam nova insuficiência dos sistemas de prevenção, alerta, resgate e construção. As estruturas proclamadas estratégicas a nível nacional, das forças armadas às empresas estatais, muito pouco ou quase nada mobilizaram para mitigar os efeitos da tragédia. E pior, a ocorrência não é nova. Teve ano passado, em menor proporção, mas claramente suas lições não foram assimiladas.
Pode-se dizer que diante de eventos climáticos o certo é nomear a ação humana como origem de tudo. O problema é apontar o dedo para os locais que sofrem as calamidades e dizer o que eles deveriam ter feito ou deixado de ter feito para evitar os desastres. As mudanças climáticas podem ter suas evidências irrefutáveis de existência e relações com a atividade humana. Contudo, as discussões ainda estão distantes de sugerir aos cidadãos as decisões ótimas de produção e consumo.
Não raro se impõem soluções de consequências indesejáveis, destrutivas ao meio ambiente e à sociedade, como o desligamento de usinas nucleares em nações europeias, fonte de energia em zero carbono, que no final das contas elevou a demanda por carvão mineral – a fonte mais suja possível. E em 2023 o mundo registrou a quarta maior emissão de dióxido de carbono.
Por uma tentação de que conseguimos compreender, controlar e prever absolutamente tudo, formam-se inúmeros politburos. Diante deles as iniciativas individuais e cooperativas se rendem ao desalento. Não se sabe o que pode fazer. Exigem mil ações e estudos de avaliação incerta, somente possíveis aos grandes poderes econômicos.Estradas, portos, pontes, túneis, fábricas, fazendas, sistemas agroflorestais e aquicultores... tudo que poderia tirar o povo da fome e levar ao caminho da prosperidade fica em estado de espera. Burocratas aguardam que lhes ofereçam as soluções perfeitas. Pouco lhes importam o tanto de gente que passa fome, que não tem educação, assistência social ou atendimento médico. Para eles, quem tem fome pode esperar.
As tragédias deveriam nos ensinar o senso de prioridade. Os sistemas têm que servir sobretudo à vida humana, nas gerações atuais e vindouras. Quem diz “não”, ou “espera”, precisa ser penalizado pela recalcitrância. Seguindo esse princípio, os mais necessitados terão para si o fortalecimento dos sistemas que realmente importam, e poderão contar com mais braços, livres e dispostos para as ações de cidadania.