Sem porto, sem rampas, sem píeres, sem fundos, sem FTI
André Ricardo Costa
Doutor em Administração e professor da Ufam
“Somente os profetas enxergam as coisas óbvias”, dizia certo dramaturgo brasileiro. O profeta da vez é o porto Chibatão, em sua iniciativa de deslocar o píer flutuante para a foz do Madeira, caso a dragagem não ocorra a contento de prevenir uma nova interrupção da navegabilidade nos piores dias de estiagem. Como dizia o mesmo escritor, trata-se do “óbvio ululante”. Solução que sempre esteve na nossa cara, mas nunca aproveitamos. Ao contrário, ainda no século XXI os povoados da maior bacia hidrográfica do mundo estão sem portos, sem píeres, sem rampas.
Por que não se aproveita o óbvio de aproximar os municípios do interior do Amazonas com estruturas capazes de lhes aproximarem das cadeias globais de valor? Não é por falta de visão das populações locais e dos potenciais intermediários até os mercados consumidores. O historiador André Pompeu descreveu, em belíssima tese de doutorado, o intrincado sistema logístico que, na Era Colonial, permeava toda a Amazônia para coletar as drogas do Sertão. Eram estruturas quase todas forjadas pelas populações locais, que asseguravam volume e regularidade no abastecimento, se apropriando de parte relevante do valor das exportações. Iniciativas tão locais quanto a do Chibatão. Tão locais como seriam as iniciativas boicotadas por omissão.
Sim, omissão. Nunca foi por falta de dinheiro. Sabem aquela história de que a Zona Franca de Manaus impede o desenvolvimento do interior? Papo furado. O governo do Amazonas sempre atuou como caroneiro do modelo Zona Franca. Para o consumo local, impõe pesadas alíquotas de ICMS, cuja arrecadação se apoia na renda dos trabalhadores do PIM ou, cumprindo a curva de Laffer, reduz as alíquotas sobre as atividades industriais, atraindo maior quantidade de empreendimentos e, no final das contas, aumenta sobremaneira a arrecadação. E ainda exige contrapartidas. Os incentivos só valem se as fábricas pagarem tributos destinados a compor fundos cujos recursos preparem modelos de desenvolvimento alternativos à ZFM.
Essas contrapartidas são registradas sob a conta de Contribuição ao Ensino Superior, fonte de financiamento para a UEA, o Fundo de Fomento ao Turismo e Interiorização – FTI, e o Fundo de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – FMPES. Juntos, os três fundos arrecadaram mais de R$ 20 bilhões desde 2010.
UEA e FMPES são os de destinação mais fáceis de rastrear. Quanto ao primeiro, grita o tanto que o governo deixou de repassar à UEA desde cerca de 2017. Quanto ao segundo, grita a elevada inadimplência no âmbito da Afeam. Quando ao FTI, o maior de todos, com mais de R$ 13 bilhões arrecadados, grita a falta de evidências de uma mínima aplicação no sentido a que se destina. Desde 2010 não se tem notícia de algum projeto governamental efetivo para mudar a realidade do interior do Amazonas. Só muito show de subcelebridade.
Não fazem e não deixam fazer. O histórico das Drogas do Sertão e o exemplo recente do Chibatão mostram que o amazonense, enquanto povo, tem em si o ímpeto de resolver seus problemas. Não resiste a enxergar o óbvio. O problema sempre está na falta de visão das autoridades. Elas sequestram os discursos de desenvolvimento e vivem seus dias em bolhas confortáveis, imunes à realidade que nos traz alguns dos menores índices de desenvolvimento humano do mundo. Como os reis do passado, tapam os ouvidos aos profetas de hoje.